Liberdade em Jean Paul Sartre.
O que é liberdade?
Segundo
o Dicionário de Filosofia, em sentido geral, o termo liberdade é a condição
daquele que é livre; capacidade de agir por si próprio; autodeterminação;
independência; autonomia.
A
história desse conceito perpassa os estudos de épocas e pensadores diversos e
registra a interpretação de doutrinas sociais bastante variadas. Podemos fazer
uma distinção inicial entre o que se convencionou chamar de concepção
“negativa” e “positiva” da liberdade.
Em seu sentido
negativo, liberdade significa a ausência de restrições ou de interferência.
O sentido positivo de liberdade
significa a posse de direitos, implicando o estabelecimento de um amplo âmbito
de direitos civis, políticos e sociais. O crescimento da liberdade é concebido
como uma conquista da cidadania.
No
sentido político, a liberdade civil
ou individual é o exercício de sua cidadania dentro dos limites da lei e respeitando
os direitos dos outros. "A liberdade de cada um termina onde começa a liberdade
do outro" (Spencer).
Em
um sentido ético, trata-se do
direito de escolha pelo indivíduo de seu modo de agir, independentemente de
qualquer determinação externa. "A liberdade consiste unicamente em que, ao
afirmar ou negar, realizar ou enviar o que o entendimento nos prescreve, agimos
de modo a sentir que, em nenhum momento, qualquer força exterior nos
constrange" (Descartes).
A
liberdade de pensamento, em seu sentido estrito, é inalienável,
inquestionável. Reivindicar a liberdade de pensar significa lutar pela
liberdade de exprimir o pensamento. Voltaire ilustra bem essa liberdade:
"Não estou de acordo com o que você diz, mas lutarei até o fim para que
você tenha o direito de dizê-lo."
T. Hobbes afirma que o “homem livre é aquele que
não é impedido de fazer o que tem vontade, no que se refere às coisas e que
pode fazer por sua força e capacidade”.
Kant diz que ser livre é ser autônomo, isto, é dar a si mesmo as
regras a serem seguidas racionalmente. Para Jean-Paul Sartre, a liberdade é a condição ontológica do ser
humano. O homem é, antes de tudo, livre. O homem é nada antes de definir-se
como algo, e é absolutamente livre para definir-se, engajar-se, encerrar-se,
esgotar a si mesmo.
No
livro “A sociedade do espetáculo”
(1997), Guy Debord, ao criticar a sociedade de consumo e o mercado, afirma que
a liberdade de escolha é uma liberdade ilusória, pois escolher é sempre optar
entre duas ou mais coisas prontas, isto é, pré-determinadas por outros. Uma
sociedade como a capitalista, onde a única liberdade que existe socialmente é a
liberdade de escolher qual mercadoria consumir, impede que os indivíduos sejam
livres na sua vida cotidiana. A vida cotidiana na sociedade capitalista,
segundo Debord, se divide em tempo de trabalho e tempo de lazer. Assim, a
sociedade da mercadoria faz da passividade (escolher, consumir) a liberdade
ilusória que se deve buscar a todo o custo, enquanto que, de fato, como seres
ativos, práticos (no trabalho, na produção), somos não livres.
De
maneira geral, a liberdade de indivíduos ou grupos sempre sugere, ou tem a
possibilidade de implicar, a limitação da liberdade de outros.
O Existencialismo
“O
importante não é o que fazem do homem, mas o que ele faz do que fizeram dele”.
O filósofo que mais se preocupou em discutir temas relacionados
com a liberdade, para o exercício da ética, foi o francês Jean-Paul Sartre
(1905 - 1980).
Jean-Paul
Sartre tornou-se o filósofo mais conhecido da corrente
filosófica existencialista. A filosofia existencialista concentra-se sobre
o nosso estar no mundo e sua principal preocupação diz respeito
às condições que criamos para nossa existência e não
às condições criadas pela Natureza. Conforme Sartre, nós existimos no
mundo e depois definimos o que queremos ser. “O homem tem a liberdade de
fazer-se”. Isto é, podemos construir a nossa existência conforme as escolhas
que fazemos.
A Liberdade
Sartre
deu atenção especial ao tema da liberdade e da angústia que se sente
pela insegurança, ao ver-se, constantemente diante de situações que exigem
que façamos escolhas. E essas escolhas precisam ser éticas,
pois vivemos com outras pessoas.
Sartre defendeu
que a angústia surge no exato momento em que o homem percebe a
sua condenação irrevogável (que não se pode negar) à liberdade,
isto é, o homem está condenado a ser livre, já que sempre haverá uma opção
de escolha. Ser humano não pode viver sem fazer escolhas, essa é sua
"condenação".
Mesmo
diante de A, pode optar por escolher não-A. Quer dizer, mesmo diante
de uma coisa (A), pode escolher o contrário (não-A). Ao perceber tal
condenação, ele se sente angustiado em
saber que decide sobre o seu destino. O próprio destino depende das escolhas
que cada um faz para sua vida.
A existência precede a essência
O
argumento de que a essência precede (vem antes) a existência implica
a necessidade de um criador; assim, quando um objeto vai ser produzido (um
martelo, uma caneta, uma máquina), ele obedece a um plano pré-concebido, que
estabelece sua forma, suas principais características e sua função, ou seja,
ele possui um propósito definido, uma essência que define sua forma e
utilidade, e precede a sua existência.
Sendo
Sartre um representante do existencialismo ateu (que não considera a existência
de um deus), ele defende que há um ser onde essa situação se
inverte, e a existência precede a essência: o ser humano. Assim,
seria o próprio homem o definidor de sua essência, e não Deus, como falava o
existencialismo cristão. Isso significa que, para ele, o ser humano é
um nada quando nasce, isto é, quando passa a existir. Só depois,
à medida que vai existindo e se definindo é que passa a ser (ser algo). No
início há apenas esse nada, que confere ao ser humano a liberdade de
escolha e a grande responsabilidade de construir a si mesmo dentro das
condições encontradas desde seu nascimento.
Em sua conferência "O existencialismo é um
humanismo", Sartre afirma que o ser humano é o único nesta
condição; nós existimos antes que nossa essência seja definida. Esse seria
um dos preceitos básicos do Existencialismo. Assim, o autor nega a existência
de uma suposta "essência humana" (pré-concebida), seja ela boa ou
ruim. As nossas escolhas cabem somente a nós mesmos, não havendo, assim, fator
externo que justifique nossas ações. O responsável final pelas ações do
homem é o próprio homem.
Liberdade e Responsabilidade
Nesse sentido, o existencialismo sartriano concede
importante destaque à responsabilidade: cada escolha carrega consigo a
obrigação de responder pelos próprios atos, um encargo que tor na o homem o único responsável pelas
consequências de suas decisões. E cada uma dessas escolhas provoca
mudanças que não podem ser desfeitas, de forma a modelar o mundo de acordo com
seu projeto pessoal. Daí a importância de usar bem a liberdade para agir de
maneira ética nas relações sociais.
Assim, perante suas escolhas, o homem não apenas
torna-se responsável por si, mas também por toda a humanidade. Essa
responsabilidade é a causa da angústia dos existencialistas. Essa angústia
decorre da consciência do homem de que são as suas escolhas que definirão a sua
essência, e mais, de que essas escolhas podem afetar, de forma irreversível, o
próprio mundo.
A
angústia, portanto, vem da própria
consciência da liberdade e da responsabilidade em usá-la de forma
adequada (Ética).
Um
dos temas filosóficos que mais pode despertar o interesse e a curiosidade é o
da intersubjetividade, isto é, as relações entre os
indivíduos. A partir da perspectiva do filósofo francês Jean-Paul Sartre,
pode-se refletir sobre esse assunto tão complexo, e que nos afeta cotidianamente.
Há
uma frase bastante famosa de Sartre, presente em uma das peças de teatro que
ele escreveu, chamada Entre quatro
paredes (Huis clos no
original francês), que pode resumir o ponto de vista do autor sobre a
intersubjetividade: “o inferno, são
os outros”. À primeira vista, essa frase pode ser lida como um
atestado de pessimismo quanto ao sucesso das relações humanas – mas, não é bem
assim.
Em
sua principal obra, O ser e o nada,
Sartre aponta que a característica essencial do homem é sua liberdade radical (isto
é, o homem é ontologicamente livre, é livre em seu ser). Há um famoso jargão
existencialista (movimento filosófico que tinha em Sartre um de seus mais
importantes filósofos), que diz que, no homem, “a existência precede a
essência”. Bem resumidamente falando, isso significa que, para um
existencialista, o homem primeiro nasce, passa a existir no mundo, e só depois,
no decorrer de sua vida, ele constrói algo que possa ser chamado de sua
“essência” – aquilo pelo qual identificamos cada pessoa em particular. Essa
“essência” se forma, basicamente, pelas escolhas que cada um de nós faz ao
longo de nossas vidas (valores, profissão, a forma de se relacionar com os
outros, opiniões, gostos, crenças, etc.).
Ainda
na peça Entre quatro paredes,
Sartre afirma que, afinal, um homem “nada
mais é do que a soma das escolhas que fez durante sua vida”. É nesse
movimento que nossa existência pode ganhar um sentido que, a priori (antes) ela não tem.
Se
o homem é fundamentalmente livre, mesmo alguém mantido sob a mais cruel
dominação, no fundo permanece livre em seu ser, em sua consciência. Quer dizer,
um homem jamais conseguirá dominar plenamente o outro, penetrar plenamente em
sua consciência: sempre haverá lá uma resistência, um resquício de liberdade.
Em outros termos, um homem nunca pode ser reduzido completamente à condição de
um objeto; a isso sempre haverá uma espécie de oposição por parte de nossa
consciência, vinda de nossa liberdade radical.
Nesse
sentido, as relações humanas são, a princípio, conflituosas: quando
encontro o outro, há um confronto entre minha liberdade e a dele. Porém, e
isso é importante, esse conflito não é tudo. Eu preciso do outro, por exemplo,
para me conhecer plenamente, para escapar ao que Sartre chama de má-fé,
essa espécie de mentira que contamos a nós mesmos para fugir da angústia, que
se origina da responsabilidade que temos por nossas escolhas (por exemplo:
fui mal numa prova hoje. Ontem, porém, ao invés de estudar, resolvi ficar vendo
TV. Para Sartre, é preciso que ajamos autenticamente diante dessa situação, é
preciso que eu assuma a responsabilidade de que fui mal porque não quis
estudar, porque preferi ficar vendo TV. No entanto, frequentemente agimos de
“má-fé”, e tentamos nos enganar, por exemplo, dizendo que fomos mal na prova
porque ela estava muito difícil, ou porque o professor é ruim, etc., eliminando
o peso da responsabilidade por nossas escolhas). O olhar alheio (do
outro) é responsável por nos ajudar a escapar da tentação da má-fé, ele é
responsável por nos dizer quem somos, e não quem pensamos ser – o que é
fundamental se quisermos melhorar, crescer, evoluir em todos os aspectos. Isso
para não falar do necessário processo de socialização, sem o qual não
conseguiríamos sobreviver.
Assim,
na perspectiva sartriana, não há relação humana que não carregue em si mesma um
germe de tensão. “O inferno são os outros”, para Sartre, significa
justamente isso: porque o outro também é livre, não podemos controlar
completamente o que ele pensa, o que ele nos diz, o limite que ele impõe à
nossa liberdade (o que frequentemente gera conflito); mas, ao mesmo tempo
(daí vem a tensão), preciso dele, de seu olhar (ainda que, muitas vezes,
esse olhar veja algo em nós que não gostamos), para me conhecer e poder agir no
mundo, pois apenas por nossas ações (sobretudo as que interferem positivamente
na vida dos outros), e no nosso contato intersubjetivo autêntico (que ocorre
quando encaro o outro como um ser igualmente livre, e não como um simples
objeto), que podemos superar nossa situação e dar um sentido legítimo à nossa
existência.
A
perspectiva filosófica de Sartre sobre as relações com os outros traz alguns
elementos importantes para pensarmos. No fundo, o que a teoria sartriana coloca
é que, se o homem é livre, toda relação humana baseia-se
numa escolha de cunho moral, quer dizer, na forma como escolhemos ver
e nos relacionar com o outro. Ao fim e ao cabo, segundo Sartre, a última
palavra compete a cada indivíduo. Mas, com base no que foi exposto, você
poderia questionar: numa sociedade altamente individualista como a nossa, na
qual a maioria das pessoas é vista como uma simples mercadoria, ou como número
para estatísticas, como relacionar nossa liberdade com o respeito e a
afirmação da liberdade do outro? Parece que um dos desafios contemporâneos
é justamente tentar desatar esse nó.
Reflita e Responda:
1. Explique a afirmação: “O
importante não é o que fazem do homem, mas o que ele faz do que fizeram dele”. O
que na frase se refere ao determinismo e o que se refere à liberdade?
2. O que significa dizer “O
homem tem a liberdade de fazer-se”?
3. No caso do ser humano, “a
existência precede a essência”. Conforme o texto, o que isso quer dizer?
4. Explique a relação entre
“angústia” e a “condenação à liberdade” pensada por Sartre.
5. Como
entender a ideia de Sartre de que “o inferno são os outros”, mas que ao mesmo
tempo, precisamos do outro. Explique.
Para quem se interessar:
SARTRE,
Jean-Paul. Entre quatro paredes, ed. Civilização Brasileira.
_________________. O
ser e o nada, ed. Vozes (Terceira Parte, sobretudo);
Referência Bibliográfica:
COTRIM,
Gilberto; FERNANDES, Mirna. Fundamentos de Filosofia. 4ªed. São
Paulo: Saraiva, 2016.
FILHO,
Clóvis de Barros; POMPEU, Júlio. A Filosofia Explica as Grandes Questões
da Humanidade. Editora Leya. Rio de Janeiro. 2013.
GALO,
Sílvio. Ética e Cidadania: Caminhos da Filosofia. 18ªed. Campinas,
SP: Papirus, 2010.